'A felicidade? É fazer amor por amor. É o coração a ameaçar rebentar de tanto bater, quando um olhar único se fixa na tua boca, quando uma mão te deixa um pouco do seu suor na dobra do joelho esquerdo. É a saliva do ser amado que desliza na tua garganta, açucarada e transparente. É o pescoço que se alonga e se liberta das suas fadigas e dos seus nós e se torna infinito porque há uma língua que o percorre a todo o seu comprimento. É o lóbulo da orelha que pulsa como um baixo-ventre. É o dorso que delira e inventa sons e estremecimentos para dizer «amo-te». É a perna que se levanta, aprovadora, as calcinhas que tombam como uma folha, inútil e incómoda. É uma mão que entra na floresta dos cabelos, acorda as raízes da cabeça e as inunda, generosa, com a sua ternura. É o terror de dever abrir-se e a inacreditável força de se oferecer, quando tudo no mundo é pretexto para choro. A felicidade é Driss rigído pela primeira vez dentro de mim e as suas lágrimas escorrendo-me pelo ombro. A felicidade era ele. Era eu.
O resto não passava de fossa comum, de vazadoiro público.'
'E começei a rezar! É claro que sim, que fiz a minha última oração... Durante uns segundos pensei na morte. Rachid aumentou mais a pressão no meu pescoço e, logo a seguir, começaram a chover murros, rápidos e violentos. Ele queria mesmo matar-me. Chamei pelas crianças que se encontravam a dormir no quarto, mas deviam estar com o sono tão pesado que não me ouviram. Gritei por socorro, mas os vizinhos não se mexeram. Um homem que bate na sua mulher não é uma coisa assim tão rara por estas paragens e as pessoas normalmente não se metem. Acabou-se, eu já nem reagia. Começei então a sentir a vida a fugir-me e perdi os sentidos.'
Motivo de Urgência: Criança em estado de coma por provável intoxicação por organofosforados. Segundo o pai, este lavou-lhe a cabeça com 605 forte, na tentativa de desparasitar a criança. Pupilas mióticas, contracções musculares, bradicardia, auscultação pulmonar com diminuição do murmúrio vesicular à direita, por provável aspiração de vómito; procedeu-se a oxigenoterapia, lavagem externa abundante, algaliação, intubação e ventilação assistida, administração de 0.05 mg/Kg de atropina repetida de cinco em cinco minutos, diazepam endovenoso.
Exames subsidiários. Correcção de desiquilibrios hidroelectrolíticos.
Após estabilização, iniciou-se a transferência da criança para Hospital Central, em ambulância medicalizada.'
Antes a indiferença que a raiva, antes o esquecimento que a mágoa.
É isso mesmo... sempre escolhi esquecer quem de alguma maneira me fez chorar. Sempre o disse e volto a afirmá-lo : O caminho é sempre para a frente, de que nos serve olhar para trás?
Vinte e três e meia de quinta-feira, na televisão mostram em directo as imagens da zona de Campolide onde tinham sido neutralizados os dois raptores, chamada telefónica em curso:
-Tu já viste? Isto é o fim do mundo!
-Eu já estou farto de te dizer que essa cidade é muito perigosa...
-Não é nada... isto foi uma casualidade... mas tenho estado a pensar que ir ao banco na hora em que está quase a fechar pode ser um risco...
-Não é nada... que disparate!
-Não? Não? Tu já viste se eu que tivesse ido aquele balcão hoje?
-Isso era capaz de ter sido mau... só te tinhas despachado agora...
Fascinou-me a delicadeza com que descalçou os chinelos antes de a abraçar com os dois braços e o corpo inteiro para dançarem. Ela ensinava-o... ele gostava dela...
'Sabemos hoje que Colombo passou a vida inteira a ocultar o seu passado. Chamamos-lhe Colombo, mas não existe um único documento no qual ele se refira a si próprio por esse nome. Um único. No que diz respeito a Colombo, sempre se apresentou, nos manuscritos, que nos chegaram, como Colom ou Colon. Este é um facto que ninguém disputa e que tem estado na origem de um grande embaraço para os que defendem a tese genovesa. Se o descobridor da América e o tecelão de seda de Génova são a mesma pessoa, como explicar que o navegador jamais tenha usado o nome do tecelão? Os Genovistas, que acusam os anti-genovistas de serem muito especulativos na formulação das suas teses, recorrem eles próprios a grandes hipóteses especulativas para justificarem esta profunda anomalia. Não só o homem a quem hoje chamamos Crisóvão Colombo nunca, ao que se sabe, usou esse nome para se apresentar, como ainda por cima manteve deliberadamente um véu de mistério a envolver as suas origens.'
Qualquer tipo de discussão deixa-me arrasada. Penso e repenso nos motivos que me arrastaram até aquele momento em que me vi a falar palavras mais ásperas, a ouvir coisas que não queria. Porque é nas discussões que podemos mostrar o pior de nós mesmos. Onde impulsivamente se dizem as coisas da pior maneira, talvez seja uma espécie de sadismo... onde queremos furar, esmiuçar, lacerar... deixar uma cratera de tamanho gigantesco que faça doer... pelo menos mais do que aquilo que nos doi a nós.
E depois desejamos muito apagar tudo e poder voltar atrás... mas já não dá.