Batimento Cardíaco

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Turvo#

Nunca soube explicar o sentimento que a ligava à sua mãe. Chamava-lhe mãe e referia-se a ela como 'minha mãe' quando falava com terceiros. Mas sabia que aquilo que sentia não era nada que pudesse ser sentido por uma filha, tal como sentia que não era sentida como filha pela sua mãe. Não falava, gritava porque ela ouvia mal, ou então fingia que não ouvia para não ter de responder. O pouco tempo que passava lá em casa era passado em frente à janela, a deixar que o sol que entrava através dos vidros lhe batesse em cheio na cara, e passava assim horas, manhãs, tarde, dias inteiros. Até que se levantava para fazer o jantar e escolhia sempre uma ementa que sabia que a filha não aprovaria. Era como se uma discussão fosse bem vinda, algo que as obrigaria a falar uma com a outra. Depois deixaria escapar que a nora é que era boa, que era uma joia, chegava à malvadez de lhe dizer que era a filha que sempre desejou ter. Até a fazer explodir de raiva e falar com despeito, mandá-la ir ter com eles. Por isso ela mesmo em dias de folga, levantava-se mais cedo para sair de casa com uma desculpa qualquer, para ela não se sentar à janela todas aquelas horas e poder vaguear pela casa sem o risco de tropecar nela. Comprava o jornal e ficava horas na pastelaria do bairro, depois conversaria com alguém que já conhecesse de vista, compraria hotaliças que na realidade nem precisava e voltaria para casa na hora de almoço, para dizer que não gostava da comida que a mãe tinha feito.

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