Batimento Cardíaco

terça-feira, 29 de maio de 2007

# 107

Perguntavam-me como posso eu não gostar do cheiro de terra molhada. Questionavam-me como se estivesse a cometer uma falta indesculpável.
Não gosto, faz-me faltar o ar, faz-me lembrar o muro alto do cemitério onde ia todas as semanas ainda em miúda. Do cheiro das flores em putrefacção que se amontoavam junto ao chafariz onde podíamos ir buscar os baldes de água. Naquela altura era tão pequena que ainda não sabia ler. E depois de prometer que não me afastava para sítios onde os olhos da minha mãe não me pudessem ver, caminhava entre túmulos e distraía-me a ver as fotografias, os anjos em pedra, as flores, um pouco abaixo havia um que não era coberto por pedra mármore como o nosso e a maioria dos restantes. Aquele era baixinho, não tinha fotografia, apenas um número dourado numa tabuleta preta. Mas o que me fascinava eram os vidrinhos que cobriam o chão, emoldurados por uma pequena parede branca. Pedaços de vidros de todas as cores. Cores fortes como o vermelho, o amarelo, o azul. Destoava de toda a cor que nos envolvia naquele espaço. Imaginava quantos copos foram preciso partir para conseguirem aquilo tudo.
Depois algumas vezes corria e a minha mãe ralhava-me dizendo que ali não se podia correr nem brincar. Antes de virmos embora ela rezava, eu gostava de me meter ao lado dela com as mãos entrelaçadas. Ainda não sabia rezar. Ainda não percebia porque ela o fazia.

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1 Comentários:

  • Eu ainda hoje não rezo, mas vivi quase 20 anos perto de um cemitério. Dos vizinhos dessa altura, só posso dizer bem: nunca me senti incomodado com o barulho que faziam. :)
    Quanto ao cheiro de terra molhada, adoro. É essa a beleza de tudo isto: não gostarmos todos de azul.
    Bjs

    Por Blogger João, Às 29 de maio de 2007 às 11:33  

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