Batimento Cardíaco

terça-feira, 6 de outubro de 2009

# O Retrato de Dorian Grey

«Pouco tempo depois, ele chamou um fiacre e dirigiu-se para casa. Deteve-se por uns momentos à porta a contemplar a praça silenciosa, de inexpressivas janelas cerradas e persianas estáticas. O céu era agora de pura opala, e os telhados das casas brilhavam como prata. De uma chaminé em frente saía uma ténue espiral de fumo, que se enroscava como uma fita lilás pelo ar cor de nácar. No imponente vestíbulo forrado de madeira de carvalho, pendia no tecto uma enorme lanterna dourada de Veneza - dos despojos da barca de algum doge -, onde ardiam ainda três luzes bruxuleantes: pareciam pétalas transparentes de chama azul com orlas de fogo branco. Ele apagou-as e, atirando o chapéu e a capa para cima da mesa, atravessou a biblioteca em direcção à porta do quarto, um espaçoso aposento octogonal no rés-do-chão que, devido à sua recente predilecção pelo fausto, acabara de mandar decorar para si, ornamentando-o com originais tapeçarias renascentistas que tinham sido encontradas arrumadas num sotão abandonado em Selby Royal. Quando fazia rodar o puxador da porta, os olhos depararam com o seu retrato pintado por Basil Hallward. Recuou sobressaltado, como que surpreendido. Em seguida, um pouco perplexo, foi entrando para o quarto. Depois de ter retirado a botoeira do casaco, pareceu hesitar. Por fim, voltou atrás, aproximou-se do retato e examinou-o. À fraca claridade da luz que conseguia passar através dos estores de seda creme, afigurava-se-lhe um pouco alterado. A expressão estava diferente. Dir-se-ia que havia um laivo de crueldade na boca. Era deveras estranho.
Voltou-se, caminhou para a janela e subiu o estore. O esplendor do amanhecer invadiu a sala e varreu as fantásticas sombras para cantos escuros, onde ficaram tremendo. Mas a curiosa expressão que notara no rosto do retrato parecia ter permanecido, ter-se acentuado ainda mais. A luz trémula e cadente do sol revelava-lhe os traços de crueldade que contornavam a boca tão nitidamente como se estivesse a ver-se num espelho, depois de ter cometido alguma acção terrível.
Estremeceu e, retirando de cima da mesa um espelho oval emoldurado por Cupidos de marfim - mais um dos muitos presentes de Lord Henry -, lançou um rápido olhar ao mais fundo da superfície polida. Não viu traços como aqueles a distorcerem-lhe os lábios rubros. Que significava aquilo?
Esfregou os olhos, aproximou-se do retrato e examinou-o de novo. Não via indícios de qualquer alteração quando olhava para a pintura em si e, no entanto, não tinha dúvida alguma de que toda a expressão se modificara. Não se tratava de pura fantasia sua. Aquilo era de uma evidência horrível.»

Etiquetas:

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]



<< Página inicial